Soa até como ironia nos dias atuais chamar o brasileiro de cordial. Sérgio Buarque de Hollanda escreveu, no século passado, um livro sobre esse tema: O homem cordial. Veja os significados que o dicionário do Houaiss dá à palavra cordial: que demonstra afabilidade, sinceridade; caloroso, franco, que revela disposição favorável em relação a outrem, em que há boa vontade ou convergência de pontos de vista. Não parece ironia mesmo? Cadê tudo isso que está do dicionário?
Antigamente – e bem antigamente – o brasileiro era conhecido por essas características. E isso se via em todos os lugares. Não havia clima de guerra nos estádios de futebol. A organização do evento não precisava determinar onde é que cada torcida deveria ficar. E a polícia não obrigava que, nas arquibancadas, ficasse um enorme espaço vazio entre as torcidas. Os torcedores, independente do time por que pelos quais torciam, entravam e saíram juntos. E era raro saber de algum desentendimento. E quando havia, era porque um torcedor havia bebido um pouco mais do que o necessário.
E nas ruas? Tudo mais fácil. As pessoas se conheciam e se apoiavam. Eram solidárias. Tinham prazer em ajudar. E agora? Quando a gente precisa sair, é como se preparasse para um evento perigoso. Antes de deixar a casa, a gente tem que traçar o itinerário menos perigoso. Se for possível, procura sair acompanhado. Sozinho, o bandido pode considerar vulnerável o cidadão. Em seguida, devemos tirar do corpo qualquer coisa que possa despertar a atenção de terceiros. Nada de relógio caro, nada de celular à vista. No caso das mulheres, nada de joias caras, nada de bolsas de marca. Conheço mulheres previdentes que deixam no carro a bolsa do ladrão, ou seja, uma bolsa visível, com poucas coisas dentro, para, no caso de serem assaltadas em seus próprios veículos, entregarem a tal bolsa para satisfazer o bandido. É um verdadeiro clima de guerra.
Hoje nem as escolas ou os hospitais são lugares seguros. O pai tem que entregar o filho na porta da escola e, ainda assim, fica esperando, para ver se conseguiu entrar com segurança. Depois, precisa verificar se as portas são seguras, se o diretor tomou providências para impedir a entrada de estranhos, se o sistema de segurança está funcionando bem. Logo um dos cargos da Educação será o segurança armado.
Na verdade, hoje, todos são inimigos até prova em contrário. E devemos ser previdentes para evitar as grandes tragédias. Às vezes, o inimigo é o conhecido, como, por exemplo, no caso de algumas tragédias, em que o responsável é o patrão, que, para ter maiores lucros, não se preocupou com a segurança de seus funcionários. Então, o empregado, agora, ao ir para o emprego, não tem certeza de que vai voltar. Alguma barragem sem manutenção pode provocar a morte de algumas dezenas de pessoas.
É um festival de incertezas e de terrores. A única certeza é que não há certeza alguma, nos dias atuais.
BAHIGE FADEL