Bahige Fadel

SER CRIANÇA, por Bahige Fadel

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SER CRIANÇA

Sabe que esses dias senti uma vontade enorme de ser criança. Sim, ser criança. Coisa que pode parecer impossível, mas na realidade, não é. Bem, não deveria ser. Deveria ser algo simples. Deveria ser assim: a gente pediria para uma fada que usasse sua varinha de condão e blum. Imediatamente, a gente voltaria a ser criança.

Bahige Fadel

Não é o que você está pensando. Não é uma questão de idade. Já vi muita gente velha aos sete anos de idade. E também já vi muita criança aos setenta anos. Não é questão de idade, é questão de sonhar. É questão de achar que a gente é dono do mundo, quando, simplesmente, é dono – e olhe lá – de meia dúzia de bolinhas de gude. Isso é ser criança.

Tive vontade de ser criança assim. Pensar como criança, agir como criança, correr como criança, brincar como criança. Não ter tempo de tomar banho, que é uma coisa demorada que a mãe da gente insiste que é importante para não ter doença, porque é preciso brincar. E a mãe da gente, que não é mais criança, não consegue compreender que é preciso brincar bastante, correr pelas ruas, sem preocupação alguma. Sim, quando eu era criança, dava para brincar nas ruas de Pardinho, sem perigo algum. O único perigo era tropeçar e cair. Daí, ficava aquela marca no joelho. Mas o pior era que a mãe ficava dizendo que a gente não tinha jeito, que não tinha juízo, que um dia a gente ia se matar de tanto correr e fazer ferida no corpo. E a gente dizia, para tranquilizar a mãe, que aquilo era uma feridinha de nada, que nem estava doendo. Porque, se a gente dissesse que doía, não podia brincar naquele dia e no dia seguinte, até que a ferida não doesse mais.

Puxa vida, seria bom ser criança novamente. Acreditar em papai Noel. E não importava que a professora tivesse dito que papai Noel não existia, que o papai Noel era o papai da gente. Ela podia estar certa, mas a gente também estava. E a gente esperava pelo Natal, para que o bom velhinho nos desse aquele presente, com o qual brincávamos até o Natal seguinte. A gente acordava bem cedinho, para ver se o papai Noel havia atendido o nosso pedido. Lógico que atendeu. Caramba! Tanto esforço para ser um bom menino, um bom aluno, respeitar os pais e os mais velhos, fazer tarefa de casa que a professora tinha passado. Acho que a dona Ernestina não teve infância. Passa tanta tarefa para a gente. Será que ela não sabe que a gente tem que brincar? É só tarefa, tarefa, tarefa… Mas fazer o quê? Se não faz tarefa, além de tirar nota baixa e não poder brincar no recreio, vem punição dos pais. Criança sofre! É que os adultos parece que se esqueceram de quando eram crianças.

Nossa! Agora, eu estou me lembrando de um Natal em que o papai Noel me deu um revólver de espoleta. Sensacional! Naquele tempo, ninguém dizia que revólver de espoleta não era bom para as crianças, porque gerava violência. A gente montava no cavalo baio, que nada mais era do que um cabo de vassoura velha, e saía ‘matando’ os bandidos. E ninguém falava que aquilo estimulava a violência. E nem nos tornamos pessoas violentas. Eram tempos diferentes e mais puros.

Logo cedinho, a gente se reunia na rua ou na praça para ver o que o papai Noel tinha dado para cada amigo. Ninguém pedia brinquedos eletrônicos. Ninguém pedia celular incrementado. Os rapazes pediam um revólver de espoleta e as meninas, bonecas. Mas o que as meninas pediam não nos interessava. Afinal de contas, as meninas são meninas. E menina brinca de um jeito esquisito. Que graça tem ficar brincando de boneca? Gostoso mesmo é brincar de matar bandido ou de colocar pedaços de tijolo na rua, feitos gols, e jogar bola. E se não houvesse bola, podia ser uma laranja mesmo, que a gente ia pegar no quintal do vizinho. Ou então, jogar, na rua, bola de gude. Até os adultos iam assistir. E eu tinha umas bolas de aço insuperáveis. Ganhava todas.

Vontade mesmo de ser criança de novo. Nem que fosse só por alguns minutos. Ter somente as responsabilidades de criança e achar que a mãe gostava mais do meu irmão do que de mim. E de que adiantava ela dizer que amor de mãe é igual para todos os filhos? Não adiantava nada. E não adiantava nada também meu irmão se queixar de que a mãe gostava mais de mim do que dele. Conversa mole, só pra me enganar. Vontade de ter minha mãe de novo me preparando para eu ir limpinho para a escola. Não esqueceu nada, meu filho? Não quero receber queixa da professora. Quero que o meu filho seja o melhor aluno da escola. O mais bonito, o mais inteligente. Não vá me aprontar, viu? Se aprontar, vou deixar você de castigo.

Sei que ser criança tinha umas coisas chatas. Mas se era para fazer, a gente fazia. Confessar, para depois poder comungar na missa de domingo. Era um problema. A gente não podia esquecer nenhum pecado. Tinha que dizer tudo para o padre. Se comungasse com pecado, ai ai ai ai ai. E se o padre descobrisse que a gente não contou aquela mentirinha de nada que a gente disse para a professora? Não fiz a tarefa, professora, porque minha mãe precisou de mim para uns trabalhos. E se a mãe descobrisse a mentira, depois? Então, a gente tinha que confessar tudo pro padre, depois rezar uns pais-nossos e umas ave-marias, para um dia poder ir para o céu. Mas a gente não tinha pressa de ir para o céu. Aqui na terra estava bom demais. A terra era o nosso céu.

‘Oh que saudades que eu tenho/ da aurora da minha vida,/ da minha infância queria/ que os anos não trazem mais.’ – escreveu o poeta Casimiro de Abreu. Pois é, ele também teve vontade de ser criança. Mas ser criança mesmo, não essas crianças que a gente vê, de repente, que desaprenderam de ser crianças. Queria voltar a ser criança que pensa como criança, que sonha como criança, que reclama das injustiças do mundo, como ter que arrumar a cama, para a ajudar a mamãe, como toda criança reclama. Quero ser criança para rezar todas as noites para o papai do céu dar saúde para meus pais e meu irmão. Para meus pais, para que eles cuidem de mim, e para meu irmão, para que ele não fique me importunando, porque, quando fica doente, é um chato!

BAHIGE FADEL

 

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